Arte e artisti
Calandrucci em Santo António dos Portugueses
A actividade na igreja nacional de Roma
e novidades sobre a sua chegada a Portugal1
Francisco de Almeida Dias
Aluno do grande Carlo Maratti, Giacinto Calandrucci (1645-1707) é o pintor mais representado na igreja de Santo António dos Portugueses. O início da actividade que desenvolve ali liga-se à decoração de uma capela particular, cujo patronato resolve beneficiar mais tarde a Congregação, financiando também o arranjo do altar-mor e empregando para tanto o mesmo artista. Estreitados assim os laços com a comunidade portuguesa de Roma, a obra de Calandrucci acaba por chegar a Portugal, através de gravuras, cópias, e talvez de um esboço original…
Giacinto Calandrucci
Recordado pelos biógrafos como um homem “di mediocre statura, ilare, e giocondo di volto, di colore ulivastro, di complession forte, e robusta, e di buon naturale, e costume”2 , um espírito quieto dotado de fissa applicazione, Calandrucci terá nascido em Palermo, por volta de 16453, e vindo da “pátria siciliana” com os rudimentos da arte aprendidos junto de Pietro del Pò (1610-92). Em Roma terá chegado com pouco mais de 20 anos ao atelier Carlo Maratti (1625-1713)4 ali trabalhando aturadamente5, pois que o mestre não se limitava a ensinar-lhe o mester, mas avalizava-o também junto do mercado artístico, estando-lhe próximo até ao fim da vida6.
Depois das primeiras encomendas de pouca monta, a sua actividade nas igrejas de Roma começou a alternar com alguns aparatos efémeros7 e várias decorações de temática pagã tais como as notáveis Quatro Estações no Palazzo Lante, os “(armoniosamente condotti a fresco) Indimione, e la Luna com altre favole”8 na galeria do Palazzo Muti-Papazzurri, as cenas marítimas no Palazzo Strozzi-Besso (as três em Roma), ou ainda o Sacrifício de Ceres da Villa Falconieri (em Frascati)9. À admiração que começa a gerar, foi sensível o embaixador espanhol Del Carpio, que lhe acenou a hipótese da sua transferência para a Corte dos Bourbon e a nobilitação (o que acabou por nunca se realizar) embora o seu auto-retrato conservado em Berlim10 - a efígie de um homem de peruca empoada e ricos vestidos, num medalhão trabalhado com os símbolos do desenho e da pintura – evoque essa mesma nobiltà de que não houve pergaminho mas confirmação popular11.
Nos últimos anos de vida Calandrucci é afligido por uma acuta febbre12 que não o impediu de partir para a Sicília, por volta de 1705-6, onde deixou incompleto o seu último fresco na volta do Oratório de San Lorenzo13 em Palermo. À hora da morte, ocorrida a dia 22 de Fevereiro de 1706 ou 170714, os seus herdeiros encontraram-se com um vastíssimo espólio entre mãos, que permaneceu praticamente intacto durante trinta anos na sua casa-atelier na velha strada Paolina (actual via del Babuino), primeiro usufruída pelo irmão15 e depois de 1710 pelo sobrinho Giovanni Battista16. Só em 1736 se procedeu à divisão dos bens17 entre os primos, divisão que justificou um segundo inventário exaustivo dos bens , já que o primeiro fora feito imediatamente depois da morte de Domenico em 1710.
Sobre Calandrucci de assinalar três estudos importantes: o de Frieda Schultze18 que problematizava a obra do artista, identificando-lhe três fases principais19, para concluir que o pintor palermitano se poderia considerar um expoente do breve Rococó romano; o de Dieter Graf20 , que estudou mais de 1500 desenhos autógrafos do artista, conservados maioritariamente no Kunstmuseum de Düsseldorf21 e no Cabinet des Dessins do Louvre, inventariando, ordenando e reproduzindo na sua maioria o seu vastíssimo espólio, juntando-lhe uma importante resenha bibliográfica e uma lista de gravuras sobre obras de Giacinto; por fim o de Anne-Lise Desmas no Bollettino d’Arte22: a descoberta do inventário de todo o acervo artístico de Calandrucci23, feito em 1737 para divisão dos bens pelos sobrinhos, que permitiu estabelecer relações entre os bens ali descritos e aqueles conservados hoje em vários museus, e precisar a cultura artística veiculada ao tempo: o conteúdo do atelier como aplicação prática da teoria classicista veiculada pela literatura artística e pelo conceito de Idea de Bellori24.
2LIONE PASCOLI, Vite de’ pittori, scultori ed architetti moderni, II, Roma, 1736, p.314 (de ora em diante referido como PASCOLI).
3Segundo Nicola Pio (PIO, Nicola, Le vite di pittori scultori et architetti, [cod. Ms. Capponi 257], edição de ENGASS, Catherine e Robert, Città del Vaticano, 1977, p.87 – de ora em diante referido como PIO) o nascimento do pintor ocorreu a 18 de Julho de 1645; pelo contrário Lione Pascoli afirma que o seu natalício era a 20 de Abril de 1646.
4«Accomodatosi nella scuola del cavalier Carlo Maratti fece tanto studio, che vedendolo il maestro di natura quieto e applicato, gli pose amore e sempre l’aiutò in tutte le sue cose, a segno che in breve uscì in publico con suoi dipinti di vago colorito», in PIO.
5«Fattone perciò prima il disegno, e mutatolo, e rimutatolo finchè ne rimase soddisfatto fece susseguentemente i soliti studi, e vi cominciò a lavorare allegramente» (PASCOLI, p.316).
6«Ne feci (Calandrucci) vari disegni, e volle quando glieli portò andarvi anche il maestro, che prima gli aveva veduti, ed approvati, e mostratiglieli, e vedutili, e rivedutili sentì ciocchè il Maratti diceva, e secondo il suo parere lo scelse (…) non soleva mai far cos’alcuna senza mostrargliela (a Maratti)» in PASCOLI, p.312.
7Um quadro da Divina Sapienza - Minerva al bivio - com a imagem de Lorenzo Giustiniani num estandarte por ocasião da sua canonização, a 16 de Outubro de 1690, encomenda de Alexandre VIII (o desenho preparatório conserva –se em Roma, no Gabinetto Nazionale delle Stampe, inv.FC 127387 recto e verso); um estandarte de S. Francisco para a Confraternita delle Stigmate, etc.
8PASCOLI, p.313.
9Há notícia de ter trabalhado para o Marquês de Pallavicini, mecenas de Maratti, para o Monsenhor dei Giudici e para alguns estrangeiros de passagem por Roma (Cf. PASCOLI).
10Cf. BUDDE, I., Beschreibender Katalog der Handzeichnungen in der Staatl. Kunstakademie von Düsseldorf, Düsseldorf, 1930, quadro nº 52.
11«Acquistata non piccola stima in Roma, e fuori, ed in pátria particolarmente» (PASCOLI, p.313) e quando regressou a Palermo, «arrivato felicemente in pátria ricevè gran cortesie, ed ebbe non poche visite» in PASCOLI, p.316.
12« D’acuta febbre cade ammalato, e stette molti giorni in pericolo di morire, e morto certamente sarebbe senza l’assistenza del maestro, e degli amici» in PASCOLI, p.314.
13«Siccome allegramente vi lavorava, quando sorpreso da acuta febbre fu costretto a desistere dal lavoro (…) Dispacque generalmente a tutti questo inaspettato colpo, e molto più a chi non potè vedere compiuta la volta (…) Rappresentato v’aveva S. Lorenzo in gloria, S. Bernardino da Siena, S. Antonio di Padova con molte altre figure cosi ben disegnate (…)» in PASCOLI, pp.316-317.
14«Si portò com nobil pompa fúnebre nella chiesa de’ padri Conventuali di S. Francesco il cadavere, dove essendo stato secondo il solito com altra uguale, e concorso d’ogni sorta di gente esposto gli fu data nella capella del Santo onorevole sepoltura» in PASCOLI, p.316.
15Domenico (1655-1710), tal como Giacinto solteiro e sem descendência, veio para Roma estudar com o irmão no atelier de Carlo Maratti; a sua actividade permanece obscura.
16Enquanto este completava a sua formação artística junto da Academia de S. Lucas - onde obteve o primeiro prémio da primeira classe de Pintura no concurso de 1708, e, no ano seguinte, o segundo prémio na primeira classe de Escultura. na referida academia, o terceiro dos Calandrucci permaneceu naquela casa até 1736. Filho das primeiras núpcias de Rosalia Calandrucci com Pietro Datino, Giovanni Battista estabeleceu-se em Roma com os tios, onde terá também estudado com Maratti; «… morto poi il zio Calandrucci, (Giovanni Battista) restò sprattico nel colorire, ma bem fondato nel disegno; onde ponendo mano a dipingere senza guida, non potè riuscire in quel forte impasto simile al di lui zio; e perciò li suoi quadri non diedero tanta soddisfazione al pubblico (in SAN BIAGIO, F. da, Dialoghi familiari sopra la pittura difesa ed esaltata, Palermo, 1788, pp.232 e 233). Cf. DESMAS, Anne-Lise, «L’universo artistico di un allievo di Maratti: lo studio Calandrucci e le sue raccolte descritti da un nuovo inventario» in Bollettino d’Arte, 118, Roma, ott-dic. 2001, pp.79-80 (de ora em diante referido como DESMAS).
17Descoberto e publicado por Anne-Lise Desmas: Archivio di Stato di Roma, Trenta notai capitolini, uff. 19, vol 538, cc.152-205, 1737, 22 ottobre. Um primeiro inventário fora feito em 1710, depois da morte de Domenico (Archivio di Stato di Roma, Trenta notai capitolini, uff. 19, vol. 450, cc.236-244 e 262-267, 1710, 14 novembre cf. também cópia Archivio Capitolino di Roma, archivio urbano, sez. XIX, prot. 77) foi publicado de forma muito incompleta por AVAGNANO, Antonella, «Giacinto Calandrucci nel coro di S. Carlo ai Catinari» in Storia dell’Arte, 89, 1997, pp. 100-125.
18SCHULTZE, Frieda, «Appunti su Giacinto Calandrucci» in Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa, serie III, 1973, vol. III, fasc. F, pp.213-19 (de ora em diante referido como SCHULTZE).
19A uma “fase zero”, em Palermo, junto do gravador Pietro del Pò seguir-se-ia uma primeira fase de inspiração cortonesca (nenhuma das obras representativas desta fase do Pintor, é actualmente considerada autografa; note-se ainda a notável ausência de obras de Pietro da Cortona entre aquelas conservadas e inventariadas na casa e atelier Calandrucci); uma segunda nas décadas de 80 e 90, próxima dos modelos bolonheses filtrados por Maratti, e um último momento, na passagem para o século XVIII, em que confere aligeira modelos Barrocos – patente em Santa Maria dell’Orto (Transfiguração de Cristo e Assunção da Virgem): podem detectar-se aqui «sintomi evidenti di un ulteriore svolgimento dello stile di Calandrucci in direzione della leggerezza rocaille», em que «abbandonando i tronfi modelli classicisti e, d’altra parte, evitando il più possibile la piatta banalità di certe figure» (p.219).
20GRAF, Dieter, Die Handzeichnungen von Giacinto Calandrucci, 2 vols., Düsseldorf, Kunstmuseum Düsseldorf , 1986 (de ora em diante referido como GRAF).
21Tal espólio deve-se Lambert Krahe (1710 – 1790) que tendo adquirido os desenhos em Roma, talvez já não directamente aos herdeiros, mas a um intermediário, os vendeu em 1779 à Academia de Düsseldorf, formando o que é hoje o núcleo gráfico mais importante de Calandrucci. Sobre Krahe e a sua colecção vide GRAF, Dieter (dir.), Master Drawings of the Roman Baroque from the Kunstmuseum Düsseldorf. A Selection from the Lambert Krahe Collection, London-Edimburg, 1973.
22Op.cit.
23Que reunia cerca de 200 quadros, uma centena de gessos, 200 livros e mais de 2000 desenhos e estampas.
24Por exemplo, a preciosa colecção gráfica dos Calandrucci atesta a primazia da prática do desenho e o grande número de cópias – quadros, desenhos, gravuras e gessos – valoriza este exercício na aprendizagem artística (a integração de obras de grandes mestres no próprio caminho da perfeição).